Natural do Sertão, primeira quilombola doutora de Alagoas é formada pela Ufal

  • Ufal
  • 21/03/2024 16:08
  • Cidades
Cortesia / Ufal
Natural do Sertão, primeira quilombola doutora de Alagoas é formada pela Ufal
Natural do Sertão, primeira quilombola doutora de Alagoas é formada pela Ufal

A educação é determinante para mudança de realidades e o acesso a ela tem o mesmo grau de importância para a transformação de vidas. Um aliado no contexto de grandes desafios continua sendo, sem dúvida, a escola pública e gratuita em seus diferentes níveis de formação.

Um grande exemplo de que a educação direciona caminhos exitosos, vem da comunidade quilombola Serra das Viúvas, localizada no município de Água Branca, Alto de Sertão de Alagoas, com o doutoramento recente de sua filha natural, Maria Helena Menezes de Souza. Graduada em Letras pelo Campus do Sertão da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), ela é a primeira quilombola a ter doutorado no Estado.

O seu percurso acadêmico foi todo realizado na instituição alagoana, com graduação, mestrado e, mais recentemente, com o doutorado. Ambos na área de Linguística pelo Programa de Pós-graduação em Linguística e em Literatura (PPGLL) da Faculdade de Letras (Fale), unidade acadêmica do Campus A.C. Simões.

“Ter galgado um degrau de formação tão destacado é a realização de um sonho. Mas é também um ato de rebeldia, pois eu tinha tudo para paralisar no tempo… Quando criança era muito frequente ouvir as pessoas me chamarem de ‘bichinha’ e ‘coitadinha’. Carrego em meu corpo muitos estigmas sociais: sou mulher, deficiente, negra, quilombola, além disso, venho de uma comunidade marginalizada. Não foi fácil”, enfatiza a valente e determinada sertaneja . Mas afirma que, toda a sua formação acadêmica só foi possível e a vida universitária tomar novos rumos, por conta da interiorização da Ufal para a sua região”, relembra ela.

“Quando estavam construindo a sede do Campus do Sertão, lembro-me que ao passar nas redondezas, alguém comentou que futuramente eu estaria estudando lá, na hora eu concordei, mas verdadeiramente não acreditava que seria possível. Eu achava que aquele espaço não seria para mim. Mas foi….  A instalação de um campus no Sertão possibilitou a mim e a tantas outras pessoas o acesso ao ensino superior público e gratuito. O que faz lembrar e confirmar o que disse a reitora honorária Ana Dayse Dorea, quando da instalação do campus, em funcionamento há 14 anos, o segundo da expansão da Ufal: ‘O Sertão vai virar mar. Um mar de conhecimento'”.

Maria Helena ingressou no curso de Letras em 2013 pela ampla concorrência, e segundo ela, só veio saber da existência do sistema de cotas na Ufal, após ter feito o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e considera o programa uma grande ação de inclusão para ingresso ao ensino superior. Em sua dinâmica vida acadêmica, na graduação foi bolsista do Programa Bolsa Permanência (PBP) para indígenas e quilombolas, monitora da disciplina Teoria Literária, participante do Projeto de Extensão Abi Axé Egbé e do Centro Acadêmico do curso.

“Eu vivi a Ufal intensamente, viajei para vários eventos fora do campus e também internamente, apresentando trabalhos. O Programa PBP foi muito importante para que eu permanecesse na graduação, uma vez que faço parte de um grupo social que vive em situação de vulnerabilidade”, enfatiza, enaltecendo mais uma vez à Ufal e a universidade pública e gratuita. Vivendo na comunidade quilombola onde nasceu, o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) da graduação tratou sobre A comunidade quilombola Serra das Viúvas e concordância verbal com a terceira pessoa do plural”.

Sob a orientação da professora Elyne Vitório, do PPGLL de Letras, o mestrado, concluído em 2020, também contemplou estudos tendo como foco a sua comunidade, com a dissertação sobre A variação de nós e a gente na comunidade quilombola Serra das Viúvas. A área de estudo continuou sendo a de linguística e a aprovação para o doutorado ocorreu nos últimos meses da finalização do mestrado.

“Ao ingressar no programa de pós-graduação consegui uma bolsa de incentivo à pesquisa. Quanto ao doutorado é importante destacar que no final de 2021 consegui uma bolsa de estudos vinculada ao projeto de reconstrução da memória de Maria Denilda Moura, fundadora do Programa de Pós-graduação em Linguística e Literatura da Universidade Federal de Alagoas”. 

Mudança de foco

O desafio imposto pela pandemia da covid 19, que refletiu profundamente na dinâmica das rotinas universitárias, interferiu também no desenvolvimento do tema de estudo para o doutorado de Maria Helena e o foco teve que ser mudado, pois o agravamento da situação inviabilizou a coleta de dados. O tema A inserção da variante a gente na variedade do português alagoano, com foco em peças teatrais foi substituído por A variação linguística entre tu, você, ocê e cê na comunidade quilombola Serra das Viúvas, Água Branca – Alagoas.

Segundo a nova doutora, na fase inicial de estudo sobre o primeiro tema, a professora Elyne Vitório, que continuou sendo a  orientadora, incentivou a buscar autonomia na pesquisa com a produção de artigos, capítulos de livros, e-books e explorar novas áreas de estudos. “Com a pandemia, passei os primeiros anos do doutorado em casa e, nesse período de isolamento participei de muitos eventos on-line na minha área de estudo, assim como, cursei disciplinas, produzi artigos e cumpri algumas obrigações referentes ao programa.  Mas a situação pandêmica foi se agravando cada vez mais e não foi possível sair para a coleta de dados”.

Estudo

A pesquisa realizada aborda a ocorrência da variação no amplo território nacional e faz uma análise em duas amostras da língua falada na comunidade quilombola Serra das Viúvas. Na análise, ficou constatado que os quilombolas alvos do estudo optam, preferencialmente, pela utilização da variante você, mas também usam as variantes “tu e cê”, embora com menos frequência. Depois da análise, foi feita uma comparação entre as duas metodologias de coleta utilizadas na pesquisa e chegou-se à conclusão de que uma delas é mais produtiva na captura das variantes. 

“O Doutorado foi uma fase muito importante da minha vida. Participei de vários eventos, realizei palestras em diversos ambientes, organizei eventos na minha comunidade, escrevi artigos, capítulos de livros e estagiei no curso de Letras do Campus do Sertão, por dois períodos. Obtive experiências inesquecíveis”, comemora Maria Helena.

No futuro, mesmo com tantas conquistas, a consciência de que as lutas de vida são contínuas e do quanto pode contribuir com a sua comunidade, enquanto pessoa e profissional. “Desejo poder contribuir na luta pela igualdade/equidade racial na minha comunidade, na minha cidade e no meu estado e onde mais for necessário. A caminhada é longa e ainda estou dando os primeiros passos. Rezo para que todos tenham as oportunidades que tive, e que sejam persistentes, perseverem. Acreditem na educação, renovem suas forças e vão sempre em busca de dias melhores. Vale a pena!”

Maria Helena também é organizadora, junto com o produtor cultural Amosiel Feitosa, que foi secretário de Cultura do município, do livro intitulado “O povo quilombola de Água Branca e seus mestres”.

Desafios e vida ativa

A comunidade quilombola Serra das Viúvas é uma das seis comunidades quilombolas de Água Branca (Alto Sertão de Alagoas) e fica a 4 quilômetros de distância da sede do município. É uma comunidade rural, formada por agricultores e artesãos e possui aproximadamente 90 famílias, correspondentes a cerca de 250 moradores.

O quilombo se destaca pela confecção de artesanato confeccionado com palha de ouricurizeiro e cipó e a produção já é conhecida internacionalmente.

A comunidade tem em funcionamento uma associação – Associação das Mulheres Artesãs Quilombolas Serra das Viúvas – composta por 46 mulheres. Maria Helena faz parte da diretoria, na função de tesoureira, e diz que a entidade trabalha visando o fortalecimento da identidade feminina quilombola, principalmente, por meio de cursos, formações e capacitações.

As rotineiras reuniões sempre contemplam discussões sobre todas as temáticas que envolvem a comunidade, com decisões dos objetivos e metas para cada mês.

Filha caçula dos agricultores Maria Eliane Menezes Souza e Lourival Freire Souza, ela tem dois irmãos que também trabalham com agricultura. Do seu núcleo familiar só ela conseguiu concluir todos os ciclos escolares, mas afirma que só conseguiu estudar e superar desafios porque houve muita união familiar. Ela nasceu com uma malformação na perna esquerda, o que na sua infância comprometeu severamente a mobilidade. Com carinho e gratidão, relembra: “Eu tinha dificuldade para andar, por conta da minha deficiência, então, minha mãe me levava nas costas, às vezes meus irmãos me levavam de burro. Minha mãe comprou um carrinho de mão para que os meus irmãos me levassem para a escola e meus amiguinhos, aqueles que eram maiores, traziam-me de volta para casa. Assim foi nos primeiros anos de estudos”, conta emocionada.

A primeira escola que frequentou ficava em outro povoado da região, no sítio Batuque, a aproximadamente três quilômetros de sua residência. Era uma escola de extensão, que tinha o nome de Escola Municipal José Fernandes Torres.