Agricultor busca água embaixo da terra seca da caatinga para plantar o ano inteiro

  • Diego Barros
  • 19/05/2015 20:01
  • Cidades

Se Fabiano, Sinhá Vitória e seus dois filhos tivessem conhecido a simples, porém eficaz, tecnologia para represar a água que corre de forma silenciosa por baixo da terra, mesmo na aridez da caatinga, talvez a história contada no livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos, fosse um pouco diferente. Eles não precisariam ter se deslocado de um lugar para o outro em busca de melhores condições de trabalho, de vida e de água.

Agora, por outro lado, a difusão dessa alternativa de captação e armazenamento de água, conhecida como barragem subterrânea, bem como dos diversos tipos de cisternas, tem feito a diferença na vida de personagens reais. São agricultores que, ao controlar um pouco da água que antes cruzava o chão sob seus pés de forma invisível, conseguem dar de beber aos animais, a suas famílias e ainda produzir alimento o ano inteiro para geração de renda. Tudo isso, evidentemente, no próprio lugar onde vivem.

Um dos “Fabianos” da vida real no século XXI é seu Edézio Alves Melo, de 62 anos, que mora na comunidade Bananeira, zona rural de São José da Tapera. A vida dele já foi mais seca e com menos cores na propriedade, até que ele foi selecionado para participar de um projeto inovador no Sertão alagoano: a implantação de uma barragem subterrânea.

Apesar de ainda serem pouco conhecidas em Alagoas, existem cerca de 2.240 unidades como essa no semiárido nordestino, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). Em Alagoas, não há dados oficiais sobre quantas barragens subterrâneas já existem, mas o que se sabe é que elas ainda são poucas. No estado, 38 municípios fazem parte do semiárido e estão, portanto, sujeitos a longos períodos de estiagem, quando fica mais difícil obter água para beber e para produzir alimento.

Diante dessa situação, os governos federal e estadual firmaram um convênio para instalação de 6.951 unidades para armazenamento de água, entre cisternas de primeira e de segunda água e barragens subterrâneas, beneficiando agricultores em 15 municípios.

Porém, segundo informações da Secretaria de Estado da Agricultura, Pesca e Aquicultura (Seapa), que coordena o convênio no âmbito do Programa Água para Todos, nenhuma barragem subterrânea foi instalada até agora. Elas serão construídas na segunda fase do programa, que tem previsão de ser concluído até dezembro deste ano.

Barragens subterrâneas podem acumular até 100 milhões de litros de água

 A tecnologia conhecida como barragem subterrânea consiste no uso de uma lona para o represamento da água que está infiltrada no solo e que se desloca de um lugar para o outro lentamente. Para isso, após escolhida a área adequada na propriedade do agricultor, é feita uma escavação, cuja profundidade pode variar de quatro a oito metros e o comprimento pode chegar a 80 metros. É nessa vala que a lona é fixada, formando um “paredão”. Em seguida, a vala é fechada com a mesma areia da escavação.

Assim, quando a água que se infiltrou no solo pelas encostas chegar até ali, ela fica represada por baixo da terra, pois não consegue atravessar a lona. O local vai funcionar como se fosse uma esponja, acumulando a água durante o ano inteiro. Dessa forma, a área visível aos olhos de quem passa pode continuar seca e com a aridez típica da caatinga, mas o subsolo guarda a maior riqueza.

A barragem instalada na propriedade de seu Edézio, em 2008, numa parceria entre diversos órgãos dos governos estadual e federal e outros parceiros, como a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), custou cerca de R$ 22 mil, tem uma área de 64 mil metros quadrados e capacidade para acumular até 75 milhões de litros de água. Mas, segundo ele, que tem na ponta da língua informações repassadas por especialistas e professores universitários que se tornaram presenças constantes em sua propriedade para fazer pesquisas, ela possui atualmente cerca da metade desse volume.

“Eu dou nota mil pra esse projeto”, diz o agricultor, que consegue produzir cebolinha, coentro e alface o ano inteiro a partir da água da barragem. A produção, além de abastecer a família, é vendida para feirantes da cidade. “Tudo aqui é produzido de forma natural, não uso agrotóxico, nem fertilizantes químicos, não faço queimada, não uso pesticidas, nem inseticidas. Trabalho com respeito ao meio ambiente”, ressaltou seu Edézio, que é mais conhecido como seu Dedé e cujo trabalho começa cedo, sempre a partir das 4h da manhã.

Após os resultados positivos em sua vida com a instalação da primeira barragem subterrânea do Sertão alagoano, ele decidiu, por conta própria, instalar mais uma. Essa segunda unidade é menor, tem capacidade para acumular embaixo da terra até 25 milhões de litros de água e, segundo ele próprio, custou bem menos que a primeira: cerca de R$ 5 mil. Portanto, as duas barragens juntas podem acumular até 100 milhões de litros de água.

Água retorna para as barragens subterrâneas após irrigação

É na superfície da própria área da barragem que seu Edézio faz sua plantação. Ao todo, ele revela que produz 96 tipos de plantas, entre alimento para as pessoas, para o gado e algumas medicinais. Quase tudo é irrigado com a água retirada debaixo da terra. Para isso, ele escavou alguns poços onde ficam suas duas barragens subterrâneas e instalou kits de irrigação, que incluem bombas elétricas e a rede de tubulações e mangueiras. Após regar os cultivos, uma parte da água é absorvida pela planta, uma pequena parte evapora e o restante se infiltra no solo novamente, voltando para a barragem subterrânea.

“Assim, eu economizo e uso a mesma água várias vezes. Essa água da irrigação volta pra debaixo da terra, onde fica a barragem, e sempre é reaproveitada”, explicou seu Edézio. Segundo ele, o consumo de água diário em suas quase cinco tarefas de terras irrigadas chega a 50 mil litros. Outro benefício da barragem subterrânea é que seu Edézio não depende de caminhões-pipa para abastecê-la e, com isso, acumular água para seus cultivos.

A propriedade do agricultor se tornou referência no uso de tecnologia alternativa para convivência no semiárido e, devido a isso, além de professores universitários, ele recebe constantemente a visita de estudantes, gestores públicos, pesquisadores brasileiros e estrangeiros e outros agricultores de Alagoas e do Brasil. Suas listas de frequência, que seu Edézio guarda em casa, já contabilizam mais de 800 nomes.

“Antes desse projeto, eu plantava só feijão e milho, e isso só uma vez por ano, quando chovia. O resto do ano era de sofrimento. Cheguei a pensar em sair daqui, porque sem água não tinha alimento, não tinha como sustentar os animais. Hoje, a época que eu mais produzo é no verão. Eu tô feliz, sim”, afirmou o agricultor, que devido ao seu conhecimento na instalação das barragens subterrâneas se tornou um tipo de consultor sobre o assunto. Frequentemente ele é chamado por produtores rurais de diversas regiões do estado interessados em fazer o mesmo em suas propriedades.

Governo promete 200 barragens subterrâneas na segunda fase do Água para Todos

Apesar da construção das barragens subterrâneas ter ficado para a segunda etapa do Programa Água para Todos, o governo do Estado informou que outras 3.701 unidades já foram construídas. Entre elas, há 2.175 cisternas de primeira água – que aproveitam a água da chuva que desce pela calha dos telhados – e 1.526 cisternas de segunda água – que são aquelas usadas para produção de alimentos ou matar a sede dos animais. Os dois tipos são cisternas de placas de cimento que ficam enterradas ou semienterradas.

Segundo dados da Secretaria de Estado da Agricultura, Pesca e Aquicultura (Seapa), até agora o convênio com o governo federal já consumiu mais de R$ 24 milhões na construção das cisternas de primeira e de segunda água, que acumulam 16 mil e 52 mil litros cada unidade, respectivamente.

Essas cisternas foram construídas, segundo a Seapa, em 15 municípios da região semiárida. São eles: Água Branca, Arapiraca, Coité do Nóia, Lagoa da Canoa, Traipu, Girau do Ponciano, Craíbas, Estrela de Alagoas, Palmeira dos Índios, Igaci, Delmiro Gouveia, Inhapi, Pariconha, Piranhas e Olho D'água do Casado.

“As famílias tiveram uma grande melhora na sua condição social e financeira, pois passaram a ter água para consumo e geração de renda”, informou o gestor do Programa Água para Todos da secretaria, Dennis Calheiros. Segundo ele, na segunda fase do programa serão construídas 1.308 cisternas de primeira água e 1.942 de segunda água, o que inclui as 200 barragens subterrâneas. Com isso, serão instaladas ao todo 6.951 unidades.

Apesar da importância das cisternas para as famílias dos agricultores, ao contrário das barragens subterrâneas, elas continuam mantendo esses agricultores na dependência dos caminhões-pipa. Quando, por alguma razão, os caminhões param de fornecer, os produtores rurais usam a água de suas cisternas até a última gota sem ter a certeza de quando a operação-pipa será retomada.

Barragem subterrânea é sustentável e tem risco mínimo de contaminação

A barragem subterrânea é uma tecnologia sustentável para o semiárido, com impacto ambiental mínimo. A afirmação é da bióloga Elane Pereira, que é especialista em Engenharia Ambiental. Segundo ela, outra vantagem desse tipo de unidade é que o risco de contaminação da água é mínimo. “O risco de contaminação da água das cisternas ou dos reservatórios de superfície é bem maior”, salientou.

Ainda segundo ela, o impacto ambiental de uma barragem subterrânea é mínimo em relação ao de uma barragem de superfície, em que uma área precisa ser inundada. “Outra vantagem da barragem subterrânea é que praticamente não ocorre evaporação. Essa água pode ficar acumulada ali por muito tempo, com poucas perdas”, destacou.

Porém, segundo ela, é preciso que sejam feitos estudos e análises do solo e da própria água da barragem para se monitorar o risco de salinização dessa água. “Essa situação pode, sim, ocorrer. O principal fator para isso é o tipo de solo, porém, a barragem subterrânea continua sendo uma alternativa viável para o semiárido”, defendeu a especialista.

Tecnologia ainda é pouco difundida e carente de pesquisas

Para o membro da coordenação estadual da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), Mardônio Alves da Graça, uma das limitações da barragem subterrânea é que ela não pode ser construída em larga escala, pois depende de áreas apropriadas, com terrenos adequados em termos de relevo, solo e salinidade. Outro fator é o custo, uma vez que o valor final para instalação pode variar de uma área para outra.

“Porém, além de ser sustentável, a barragem subterrânea, quando bem utilizada, permite a reestruturação do solo e das espécies nativas, pois pode trabalhar a forma agroflorestal. Ela se torna um oásis no Sertão”, pontuou Mardônio. Segundo ele, a tecnologia da barragem subterrânea ainda é pouco difundida.

“Os gestores não têm apostado muito. Prova disso é a ausência de pesquisas no âmbito estadual que possibilite estudos de áreas apropriadas ou até modelos que possam ser adaptados às realidades de solos no semiárido. Para se ter uma ideia, até para se fazer um estudo ou um laudo de um agricultor interessado, é uma dificuldade enorme. Os órgãos não estão flexíveis a agir com a brevidade de tempo que se precisa”, detalhou o membro da ASA, entidade que há vários anos se dedica à instalação de unidades para armazenamento de água e capacitação de agricultores no semiárido brasileiro.

No Sertão, construtora reaproveita água de efluentes e de ar-condicionado

Diante da escassez de água no semiárido, principalmente na zona rural, onde poucas regiões possuem rede de abastecimento, a construtora Odebrecht, responsável pelas obras do trecho 4 do Canal do Sertão, reaproveita a água oriunda das gotas dos aparelhos de ar-condicionado instalados nos escritórios e alojamentos, em São José da Tapera.

A empresa chega a economizar 1.500 litros de água por dia apenas por esse sistema e, assim, reduz a demanda por caminhão-pipa. Essa água é acumulada em caixas e reutilizada para irrigação de plantas e limpeza dos banheiros. Para instalar o sistema, segundo informou a assessoria de comunicação da empreiteira, foram necessários apenas tubos de PVC e caixas de água, suficientes para interligar os blocos dos prédios dos alojamentos, refeitórios e áreas de fiscalização e administrativa. 

Ao todo, são mais de 80 aparelhos de ar-condicionado, que no pico da obra representaram cerca de 40 mil litros de água por mês. Esse volume é suficiente para garantir a limpeza dos banheiros e irrigação das plantas que circundam o canteiro de obras.

Ainda com foco no meio ambiente e no reaproveitamento das diversas fontes de água, a Odebrecht construiu uma Estação de Tratamento de Efluentes (ETE) para atender às especificidades do local e do resíduo gerado na obra do Canal do Sertão. O canteiro está localizado em São José da Tapera, cidade localizada a 220 quilômetros de Maceió e que não conta com sistema de tratamento de efluentes.

Segundo informou a assessoria da construtora, a distância da capital, onde há ETE adequada para receber os efluentes, o custo econômico do transporte e a própria escassez de água levaram a equipe de sustentabilidade do projeto a pensar na construção de uma ETE própria que atendesse à demanda do total de pessoas envolvidas – 400 integrantes, entre alojados e administrativos – e às características da região.

“A destinação do resíduo era feita por caminhões que se deslocavam cerca de 220 quilômetros até Maceió, onde havia local licenciado para correta destinação dos efluentes. Avaliamos que o custo para o ambiente era alto, pelo aumento de emissão de gases de efeito estufa e não reaproveitamento da água”, contou Jaime Teles, gerente de Sustentabilidade da obra.

Para diminuir seus custos e reaproveitar a água oriunda do tratamento de efluentes, a construtora resolveu então construir sua própria estação de tratamento no Sertão alagoano. A unidade tem capacidade para tratar uma vazão de 240 mil litros/dia de efluentes, o que é seis vezes maior que o consumo de água do local onde ficam os alojamentos e escritórios da obra.

Com isso, a água oriunda dos efluentes e já tratada é reaproveitada na umectação dos caminhos de serviço do Canal do Sertão e no viveiro de mudas de espécies nativas da região. “Este projeto mostra que podemos construir ETEs de acordo com a realidade de cada projeto, atendendo às normas e em alinhamento com nossa missão de responsabilidade com o meio ambiente. É viável financeiramente e ambientalmente sustentável”, comentou Alexandre Biselli, diretor de Contrato da obra.

O reaproveitamento da água oriunda do tratamento de efluentes ainda é uma novidade e, portanto, pouco realizado em Alagoas. Na Companhia de Saneamento do Estado, a Casal, esse procedimento ainda não é executado. Em alguns condomínios da capital, Maceió, que possuem a própria estação de tratamento de esgoto, consultores e especialistas dão orientações de como essa água deve chegar a um nível adequado para reuso e onde ela pode ser reaproveitada.